Foto de Luddy Searom usando uma camisa branca, sorrindo e com uma mão no óculos que está no rosto.
Eu sempre fui uma criança diferente. Nunca soube o porquê. Por muito tempo, achei que era por conta da minha sexualidade, a qual vim a ter noção aos 6 anos de idade. Muitos autistas compreendem a própria sexualidade em idades precoces, mas isso não é uma característica exclusiva do autismo.
Meus pais desconfiaram de hiperatividade ou déficit de atenção quando eu era criança, porque meu pediatra, na época, havia apontado estes possíveis diagnósticos. Eu não sei porque não levaram isso para frente, mas nunca fui diagnosticado com nada na infância. Lembro-me de ter o costume de acordar cedo e, ao invés de assistir a desenhos como a maioria das crianças fazem, eu procurava documentários no Animal Planet. Meu hiperfoco sempre envolveu biologia (ecologia, mais especificamente, mas na época eu não sabia o nome do que gostava). Não havia nada que eu quisesse para o meu futuro que fosse diferente de estar em contato com a natureza, conhecendo os animais – tanto que, na época, meu sonho era poder me comunicar com eles, como a protagonista de um dos meus desenhos favoritos de infância: Os Thornberrys.
Lembro-me de entender mais sobre os insetos que qualquer outra pessoa da minha sala, inclusive os professores. Não só insetos, mas animais em geral. Pelo menos, até ter um biólogo me dando aula, o que começou a acontecer na oitava série. Minha professora da terceira série, certa vez, chamou meus pais na escola para conversar sobre a minha atenção em aula. Era comum que eu interrompesse as aulas, fossem do que fossem, para fazer perguntas do tipo “professora, quem ganharia: uma joaninha ou uma formiga?”. Obviamente, estas perguntas não fazem sentido, mas eu tinha 8 anos e por que eu prestaria atenção à aula se eu poderia me fazer estas grandes questões muito mais interessantes?
Nunca tive muitos amigos e nunca tomei iniciativa para criar amizades. Até a oitava série, meus amigos consistiam em pessoas do meu bairro, até eu me afastar delas e usar um joguinho online como subterfúgio, já que, aos 12 ou 13 anos, ignorar a minha sexualidade passou a ser impossível e, então, passei por um período difícil de aceitação e aquisição de informação – onde a biologia me salvou, ensinando-me a me defender contra as artes das trevas, como o preconceito, enquanto também era uma ferramenta para o autoconhecimento. A partir deste ponto, meu hiperfoco passou a ser tudo relacionado às bases biológicas das sexualidades. Eu queria informar as pessoas, porque ninguém deveria ser obrigado a passar por o que eu passei, mas eu precisava me informar antes.
No ensino médio, fiquei um pouco mais sociável - de uma forma restrita, no entanto, porque essa sociabilidade e liberdade só funcionava, exclusivamente, com o pessoal da minha sala, com o qual eu estava desde a segunda série. Quando alguém diferente, de outra turma, entrava na sala, era como se minha liberdade fosse perdida. Interagir com pessoas que eu não estava acostumado a ver e interagir era desconcertante.
Avançarei, agora, para 2014, quando ingressei no curso de Engenharia Florestal na UFPR. Neste ponto, eu já havia contado ao meu melhor amigo da época, aos meus pais e ao meu irmão sobre a minha sexualidade. Interagir com os meus novos colegas, sem conhecer ninguém, dentro da universidade, foi aterrorizante. Minha ansiedade subia para um nível tão alto que acho que o único momento que já tinha vivido que era capaz de superara-los foi quando entreguei a carta para minha mãe, onde eu a informava sobre minha sexualidade. Todos os dias eram paralisantes. Dias depois, uma menina me perguntou se eu queria ir com ela e alguns colegas conhecer o Campus. Eu já conhecia o Campus, então eu pensei em dizer “não”, mas lembrei de alguma coisa que meu irmão me disse e me forcei a dizer “sim”. Apesar do medo, eu não poderia ter tomado uma decisão melhor.
Eu não sabia conversar direito, estava absolutamente nervoso. “Qual o seu nome?”, alguém perguntou. “Luddy”, respondi, sem perguntar de volta “e o seu?”, o que vim a perceber, mais tarde, que é o mais educado e esperado a se fazer. “De onde você é?”, eles perguntavam, já que muitos não eram de Curitiba, e eu respondia “daqui mesmo” ou “de Matinhos”, de novo, sem perguntar o devidamente valorizado “e você?”. Eu não dava continuidade às conversas e só respondia o que me perguntavam. As pessoas devem ter me achado arrogante ou escroto, não sei como viraram minhas amigas. Eu sempre fui horrível em jogar conversa fora.
Pouco tempo depois, comecei a me consultar com uma psicóloga que me conhecia desde a infância, porque eu queria tratar o fato de eu ser “tímido demais”. Uma das minhas primeiras queixas com a minha psicóloga, foi o fato de eu não saber como funcionava para iniciar, manter e terminar uma conversa. Eu não reconhecia e nem sabia que existiam marcadores que indicavam interesse como o “e você?”, ou que indicavam que a conversa estava chegando ao fim – não que agora eu seja exímio nessas percepções. Demorei pouco mais de um ano para contar a ela sobre a minha sexualidade e, ao longo do tempo, ela foi me ensinando mais sobre o autismo. Fui me identificando muito. Lembro de ter dito, em algum momento, “deve ser legal ser autista”, porque eu achava incrível as habilidades que alguns tinham em relação a determinados temas, então ela me explicou as dificuldades sociais e sobre a solidão dos autistas. Eu não ligava muito, afinal, uma das coisas que disse, quando comecei a ir na academia, foi que eu adoraria que os instrutores fossem computadores, assim eu não precisaria interagir com ninguém – eu achava, na época, que não me importava em estar sozinho. Nesta época, eu pensei pela primeira vez sobre ser autista.
Fiz amigos em Engenharia Florestal. Em parte, por conta do meu desempenho acadêmico. Ajudar as pessoas com as matérias e estudar junto com elas, além de aprender junto ser um exercício que eu adoro, estas práticas criam vínculos e, consequentemente, amiguinhos. Por mais que eu tivesse um comportamento estranho, se comparado com o que é esperado de uma pessoa, aparentemente, gostavam de mim e consegui fazer amigos. E haviam algumas pessoas que só me procuravam um dia antes da prova, também, mas nunca liguei. No geral, afinal, fiz bons amigos. Com um deles, eu converso até hoje: o Victor.
Foi só em 2018, quando consegui meu primeiro estágio, num laboratório que amo até hoje, o Laboratório de Evolução e Ecologia de Interações Antagonistas, que eu percebi que havia desenvolvido a habilidade de iniciar, manter e terminar uma conversa, enquanto conversava com uma mestranda sobre o TCC dela, que foi sobre feminismo. Apesar de haverem, assim como ainda ocorre, muitas falhas nas minhas habilidades sociais, fiquei orgulhoso por ter constatado, pela primeira vez, que havia conseguido fazer isso com eficiência e naturalidade. Ainda sim, eu não sabia, por exemplo, como dar tchau ao sair do laboratório. Eu não fazia ideia se eu deveria dar tchau para todo mundo ou para cada um dos integrantes, e isso me incomodava, porque eu sabia que não conseguiria dar tchau de uma maneira natural. Eu também aprendi que devia abraçar as pessoas quando elas me abraçam, porque umas amigas reclamaram que eu nunca abraçava de volta. E, depois, isso foi constatado pela menina que me chamou para conhecer o campus, lá em 2014, a qual abracei de volta depois de um abraço, já em 2019 – foi quando ela disse “olha, agora o Luddy abraça de volta”. É estranho ter que sempre tentar entender o que as pessoas esperam de mim, algumas regras sociais nem fazem sentido, inclusive. Tentar prever o que as pessoas esperam é frustrante. E, às vezes, isso me faz responder coisas impróprias a perguntas que, talvez, a pessoa não deveria ter feito. Um exemplo é quando eu disse que a maionese da minha vizinha estava horrível, aos 8 ou 9 anos, depois de almoçar na casa dela, porque ela havia me perguntado. Eu fui absolutamente sincero, porque sempre aprendi que devia ser assim. Era difícil saber até onde ia a sinceridade que as pessoas esperavam. Até hoje, por isso, imagino, meus amigos me procuram para conselhos racionais e realistas e não para conforto. Essa questão de ser brutalmente sincero é popularmente chamada de sincericídio, um termo bem comum e conhecido, a partir da própria vivência, pela maioria – se não todos – os autistas.
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